Paulo Franke

19 setembro, 2011

Primeira parte: de Nova York ao sul de Minas Gerais

Mudança mais drástica não poderia ter acontecido. Mas, como outras naqueles anos da década de 80, aconteceu.



E eu, que me considero um homem-do-asfalto, um gaúcho que gosta de cidade grande, fui transferido com minha família dos EUA para o sul de Minas Gerais, precisamente para a cidade de Jacutinga, estância hidromineral e cidade das malhas, a 80km de Campinas. Foi como que trocar a visão de arranha-céus a perderem-se de vista para as montanhas da Serra da Mantiqueira, igualmente a perderem-se de vista.



Ali, sobre uma colina, o Exército de Salvação mantinha um orfanato há muitas décadas. Chegando um tanto fora-de-lugar, a primeira observação foi das lindas montanhas, um cenário para onde se olhasse perfeito, ao longe... à nossa volta, tudo feio e malcuidado, quase caótico, um contraste gritante que acionou em mim algo do tipo "Operação limpeza e embelezamento, JÁ!"



Uma das primeiras fotos tiradas por familiares que nos visitaram. Meu macacão mostra que eu estava aceitando o desafio, igualmente terapêutico. Anneli não precisava de grandes sentimentos: logo começou a trabalhar de forma prática, estivesse gostando ou não, pois não havia funcionários no orfanato. À tardinha naquele dia quando chegamos, as meninas internas vieram espiar nossa casa não só curiosas com os novos diretores e filhos, mas também com uma pergunta: "O que vamos comer na janta?"



Em todo o caso, tínhamos uma bela casa préfabricada para morar, a primeira e última vez em que vivemos em uma casa de madeira!



E assim iniciei, com um batalhãozinho de meninas, a "operação limpeza e embelezamento já"! Enquanto Anneli limpava quartos, cozinha e a despensa quase vazia (mas não de ratos) com algumas, eu, com outras, munido de enxadas, limpávamos o mato. E muita tinta e pincel... Tudo não aconteceu de repente, mas gradualmente o aspecto do orfanato foi sendo transformado. No portão da frente uma inscrição agora dava boas-vindas à comunidade.



Como havia energia suficiente mas não finanças para pintar o prédio, deu-se um jeito de embelezá-lo, como aconteceu com a pintura de floreiras nas diversas janelas e imitação de vitrais em outras...



Uma carrocinha em um lugar estratégico na frente do prédio, um poço com flores feito de uma tubulação de esgoto, tocos de madeira que servissem de bancos, tudo foi-se modificando para melhor, graças a muito trabalho braçal...



Cidade de cafezais, recebíamos às vezes doações em sacas como também leite, diariamente, que eu ia buscar na velha Kombi (que mais tarde foi trocada por uma seminova). Os balanços quebrados, a maioria, agora estavam consertados e a comunidade podia ver algo que há muito não via: as meninas divertindo-se, ruidosas, lá no alto da colina.



E as minhas meninas? Aos poucos foram adaptando-se e não tardou muito a notícia daquela família vinda dos EUA foi-se espalhando. Muitos jovens, principalmente rapazinhos, vieram visitar o orfanato e aprender a jogar beisebol com as filhas do diretor. Diante de nossa casa o espaço era suficiente para isso, e nos finais de semana rolavam jogos, também de vôlei, que incluiam sempre as meninas internas maiores.



Não demorou muito, principalmente pelos novos amigos, nossas filhas foram-se alegrando e gostando da experiência de morar em um "sítio", em uma cidade pequena. Mudando do inglês para o português, retomaram seus estudos em escolas estaduais. Aulas de piano, exigência da mãe. Ao fundo na foto, a Igreja Presbiteriana, onde pertencia a família Prado, que cedera a propriedade por tempo indeterminado para o Exército de Salvação.



Nosso filho não demorou a demonstrar muita satisfação com a mudança... vivia como que no paraíso para um menino, andando de pônei, subindo em árvores, descobrindo esconderijos, que às vezes me lembrava o Pedrinho do Sítio do Picapau Amarelo, dos contos de Monteiro Lobato, no meio das "Narizinhos", "Emílias" etc.



Era imperativo olhar para algo bonito de qualquer janela; assim até barrancos receberam o seu toque: uma porteira velha pintada com a palavra Maranata, uma roda de carroça, um carrinho de mão furado agora com flores...



A enorme caixa de madeira, que viera com a nossa bagagem desde os EUA, foi transformada em uma casa de bonecas com possibilidade de as meninas brincarem dentro. Mais uma extensão com algumas tábuas, uma escadinha e o terraço estava pronto. E a casinha, que servia também para encobrir os diversos banheiros ao fundo do grande vão, foi inaugurada na Páscoa.



A vista da janela de nossa casa, de uma cadeia de montanhas, era uma inspiração para o meu espírito artístico, contemplação que igualmente me servia muitas vezes de alavanca - e como eu precisava! - baseada no "Elevo os olhos para os montes, de onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra" (Salmo 121:1-2).



Nossa sala, onde nos reunimos em bons momentos familiares depois de dias tomados de atividades as mais diversas.



O congelador branco à entrada da sala precisou de uma cobertura de madeira para combinar com o restante, acrescida de "fatias de madeira", dando a impressão de um estoque de lenha. Virei carpinteiro também, além de jardineiro, faxineiro, pintor, administrador e muitos etceteras... E aos poucos a necessidade - de A a Z - do orfanato foi sendo modificada para melhor, graças a Deus e aos colaboradores, que mencionarei na próxima postagem.



O céu, à noite o mais estrelado e claro que já contempláramos, dava-nos constantes espetáculos...



... também o belíssimo por-do-sol que se via olhando para a porteira dos fundos.



E o que falar das tempestades tropicais seguidas de arco-íris imperdíveis? Era impossível ser alheio às belezas do sul de Minas, daí ter sempre acionada a minha câmera fotográfica.



Sim, foi uma experiência única na minha vida, difícil mas válida... E a atividade extenuante merecia constantes momentos de descanso para o "dono do sítio"...



Não só as crianças tinham momentos de diversão... a diretora às vezes também!



Estudantes do Instituto Peniel, localizado na cidade e que preparava missionários para enviar ao índios, vinham fielmente fazer a escola dominical às crianças, uma ajuda inestimável.



O desafio espiritual sempre se mostrava grande. Fazíamos cultos no refeitório a cada dia depois do jantar, onde cantávamos e líamos a Bíblia. Anneli ensinava que as meninas deveriam orar pelo futuro, o que se tornou uma constante. "Senhor, abençoa o meu futuro!" era ouvido em cada culto. Onde estarão neste momento, já adultas, e o que lhes reservou o futuro, são perguntas que às vezes me vêm. O que plantamos espiritualmente naqueles corações infantis por certo frutificou, o que nunca saberemos nesta vida, mas porque a palavra de Deus nunca volta vazia fica a esperança.

Continua.

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Próxima postagem:

Segunda parte - Lindas Paisagens x Dramas Infantis

17 Comments:

  • Meu prezado...
    Amei tudo que vi e que li.
    Sul de Minas... Conheço algumas cidades. Foi desafiante pra vcs aquela nomeação. Deus capacita os Seus escolhidos!!
    Amei tb o paralelo feito sobre Visão...
    Que o Grande Deus continue dando Visão do Reino e fora do Reino para nós.
    Um restinho de semana abençoado,meu irmão!!
    Com carinho,
    DEA

    By Blogger paulofranke, at sexta-feira, setembro 23, 2011 2:54:00 AM  

  • Linda postagem e empenho de toda família em tornar o lugar ainda mais especial...com as bençãos divinas conseguirão mesmo caro amigo.

    By Anonymous evelize, at domingo, setembro 25, 2011 12:54:00 AM  

  • De fato Deus capacita os Seus escolhidos!
    Muito boa essa postagem principalmente para quem tenha vivido alguma experiência pessoal no lugar!
    Agora, fico perplexa em saber que obras como essa que custaram esforços aos que coletaram para obtê-las assim como aos doadores que puseram fé no trabalho salvacionista , "desapareceram " como por "encanto" (maligno) e se tornaram propriedades publicas, justamente, resultado de atos politicos, num pais podre de corrupção! Ai que doh ! ai que doh, lembrando o choro de um menininho na Internet, Buzz no Brasil! Então o mesmo aconteceu em Jacutinga e no Oricena Vargas, Piraih do Sul!
    Ai que doh, ai que doh...

    By Anonymous Anônimo, at segunda-feira, setembro 26, 2011 5:23:00 PM  

  • Obrigado, leitora! Não posso responder à altura, pois não estava mais no Brasil quando as citadas instituicões encerraram suas atividades. Sei que algumas congêneres e outras novas que foram iniciadas em prol da crianca carente agora obedecem estritamente às exigências dos conselhos tutelares das prefeituras. Uma delas o manter o vínculo da crianca com a família (dormindo em casa de familiares e passando com eles o final de semana). Assim, não mais existem, que eu saiba, internatos da forma como havia. Em um sentido isso é muito bom, pois não fazia sentido criancas com vínculos familiares serem despojadas dos mesmos, o que não era regra geral, mas que existia. Abraco.

    By Blogger paulofranke, at sexta-feira, setembro 30, 2011 8:57:00 AM  

  • Obrigada por essas informações, conhecidas em parte,não sendo exatamente o que quis exprimir com minhas duvidas...
    Na França também as obras passaram a ser fiscalizadas pelo Gr e os funcionarios , dirigentes tem que ter formação para os cargos,serem habilitados com diplomas , certificados etc, o que é uma boa coisa. Apesar de crermos que Deus capacita os seus escolhidos ( depende do espirito do designado e daquele que tem a função de designar também), mas as propriedades continuam do Armée du Salut, não se transformam em escritorios da prefeitura da cidade! como constatei em Pirai do Sul!
    Alguma coisinha me diz que a lei não é tão severa com os catolicos, pois Lula estava falando em recolocar curso de religião em escolas publicas!!!
    Alguém pensou em pesquisar ?
    Estou me dirigindo aos seus leitores para pensarem no assunto, não para me responderem!
    Obrigada por me dar a oportunidade de me "abrir" no seu blog. Talvez me interesso por ter participado um pouco durante minha juventude (criancinha até)cantando ou tocando um instrumento no Natal , para ajudar a campanha salvacionista, "Fazei Ferver A Panela dos Pobres"!
    Tudo que se faz ou recebe na infância nos marca para a vida! As experiências do Natal, fazem parte do que guardo no bauh da memoria!

    Alias seria melhor nesse caso transformarem as residências desse tipo em escolas semi-internas, com tudo o que é necessario para a formação moral e profissional de jovens até 16 anos! Recebendo alimentação, possibilidade de asseio , ajuda com deveres escolar antes de enfrentarem as vêzes pais em situações catastroficas. Pelo menos seriam menos afetados se for o caso! lar so para bebês em situação de abandono ou quase! Custaria mais barato talvez para a sociedade e mais eficaz!
    Ja que as escolas publicas estão passando por problemas enormes com crianças mal educadas mesmo de classe social não tão baixa!
    A união faz a força, faz ou não faz ? O Exército de Salvação continuaria com a obra religiosa, onde as pessoas vem com livre e espontânea vontande, como nas reuniões de compahia,ma dividindo um tempo de aprendizado de musica como sempre foi, estudos biblicos adaptados às faixas de idade, mas de modo ludico, com carteirinha assinada pelos pais em caso de menores, para o governo não intervir e nem botar defeito!
    Analia

    By Anonymous Anônimo, at sexta-feira, setembro 30, 2011 7:01:00 PM  

  • Vai aí uma sugestão boa direta da FRANCA, através do blog de um residente na FINLÂNDIA, para pessoas ligadas à área da crianca e juventude carentes no BRASIL.

    By Blogger paulofranke, at domingo, outubro 02, 2011 2:34:00 AM  

  • Um gaúcho em Minas gerais, só Deus faz estas coisas! Hoje olhando a área interna do Lar de Jacutinha visualizei as muitas samambaias que plantara para fzer um jardim interno! Quantos antúrios floresceram lá e aquele lugar que era uma oficina de costura quando cheguei se tornou num amabiente gostoso e convidativo que usei para fazer culto com as crianças - perto da natureza! Ah que tempo maravilhoso! Obrigada Senhor por ter me dado esta oportunidade!

    By Anonymous Benedita Girgel Nitsche Recupero, at sábado, novembro 05, 2011 4:05:00 PM  

  • E ai meus amigos foi com muitas saudades que visitei esta pagina, bons tempos, boas amizades e pessoas maravilhosas, como por exemplo as que aparecem nas fotos , apareçam qualquer dia sera um imenso prazer revelos novamente , um grande e caloroso abraço em todos ai.
    Tiago F. Mendonça

    By Blogger Tiago, at sexta-feira, dezembro 09, 2011 3:09:00 PM  

  • Sim, linda a postagem! Adorei morar em Jacutinga- acreditem se quiser: de todas as 17 foi a minha cidade favorita do mundo! So tenho boas lembrancas das brincadeiras, das meninas do lar, dos amigos da cidade e da natureza que enchia os olhos e o coracao a cada dia! Nunca vou-me esquecer! Meu sonho eh voltar a visitar Jacutinga sem pressa! Martta Franke da Silva

    By Anonymous Anônimo, at sábado, março 10, 2012 9:18:00 PM  

  • Paulo, ainda que não possa mais exister este Lar, com certeza DEUS ouviu as orações e reservou um futuro de esperança para aquelas meninas.
    Garanto que cada gota de suor de sua família ali derramada, não foi em vão!

    By Anonymous Eliezer, at quarta-feira, agosto 14, 2013 2:31:00 AM  

  • Saudosa e bucólica postagem. Os O.D. do ES têm mesmo que ser "camaleões" - haja capacidade de adaptação, mas certamente isso "enriqueceu" muito essa bela família. Obrigado pela bela postagem !

    By Anonymous Francisco S V Filho, at sábado, outubro 05, 2013 7:12:00 AM  

  • Muito atrasada com minhas visitas ao seu Blog. Nem parece que estou aposentada. Mas numa escapadela, li e vi maravilhas feitas por vocês naquele lugar! Parcas lembranças me transportam para esse mesmo lugar onde vivi quando ainda criança. Lembro-me de mamãe lutando sozinha com papai doente e tendo que prover o sustento daquelas crianças e cuidar da saúde de papai.
    Mas nunca ouvi sequer um lamento de sua parte.
    Não sabia que esse trabalho assistencial foi abolido!
    Parabéns valorosos amigos.

    By Blogger Yara, at terça-feira, outubro 22, 2013 10:42:00 PM  

  • Saudades do nosso tempo em Jacutinga. Naquela época eram só meninos no Lar. A foto abaixo era do nosso timinho com meninos bom de bola. E dependíamos da generosidade da populaçao da cidade e fazendas ao redor do Lar para o abastecimento do alimento de cada dia. Meu irmão, Daniel, começou uma fábrica de “rodos” e “vassouras” de madeira para ver se podia arrecadar algum dinheiro para comprar alimentos para as crianças e o resto da população do Lar. Mas isso não foi muito longe. Então êle pensou em abrir um lugar de concerto de bicicletas na cidade de Jacutinga com a mesma finalidade de obter fundos o que tambem não deu certo. Logo depois êle foi servir no serviço militar então a minha mãe perdeu a ajuda dêle. Mas, difícil como era a vida naquele tempo, para a minha família foi um tempo sem coisas materiais mas, ainda assim, um tempo bom numa cidade pequena mas bem agradável. Eu me lembro bem do lugar onde os meninos ião nadar: era um poço barrento mas ainda assim se dava para refrescar num dia muito quente. Nós tinhamos também um cavalinho que subia uns degraus para entrar em casa e pedir algo que comer.
    Uma outra lembrança foi a banda do Lar.Um professor de música da cidade vinha dar aulas de música. Mas êle não durou muito. Então a minha mãe teve que tomar a direção da banda. Nessa época eu tocava o pistão e sentava ao lado do Geraldo que também tocava o pistão, o que êle ainda faz no Corpo de Belo Horizonte.Isso são coisas que a gente não esquece e é somente um exemplo daquilo que aconteceu em Jacutinga cerca de 1957-1959.

    By Anonymous Albert Heinzle, at sábado, junho 07, 2014 6:49:00 PM  

  • Eu morei nesse lar por 8 anos
    Tenho saudades...

    By Anonymous Anônimo, at terça-feira, setembro 02, 2014 7:44:00 AM  

  • Peguei a chegada da família Frank.....eu estava lá.

    By Anonymous Anônimo, at terça-feira, setembro 02, 2014 7:45:00 AM  

  • Belíssimo trabalho que você e tua esposa fizeram no sul de MG, amigo Paulo Franke. Imagino que vocês pertençam a uma instituição religiosa que os transferiu de Nova York para Jacutinga, para realizarem esta obra no orfanato, não foi? Fotos muito bonitas.
    Um abraço!

    By Blogger Thomaz, at sábado, julho 09, 2016 1:29:00 AM  

  • Também estive nesse orfanato na década de 70,ainda não era assim.Fizeram um ótimo trabalho,parabéns a família Frank!

    By Blogger Unknown, at sábado, julho 07, 2018 2:01:00 AM  

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