Nem tudo eram flores...
"Eram 03h00 da madrugada naquela segunda-feira quando ouvimos a batida forte na nossa porta. No orfanato, grande e pequenos dormíamos profundamente, descansando das atividades do domingo de Páscoa, dia longo, alegre e abençoado que se iniciara com uma alvorada festiva ao nascer do sol quando todos nós fizemos como que uma serenata de cima da colina à cidade que ainda dormia. O 'amigo importuno' não vinha pedir pão, conforme a parábola, mas sim que acolhêssemos duas meninas filhas de um homem que, na noite anterior, assassinara a golpes de facão sua esposa e dois cunhados, ferindo gravemente sua sogra. A chacina - caso inédito na cidade - abalara a todos. Poucos dias antes, eram recebidas no orfanato duas outras meninas, um dia após o falecimento de sua mãe alcoolista." (parte de uma reportagem que fiz a uma revista)
Nossa experiência, portanto, nada tinha a ver com um "faz-de-conta-de-que-éramos-fazendeiros". Mesmo sentindo que não éramos aptos para administrar o lugar, pois nunca nos enquadramos de fato na obra social do ES, tínhamos de arregaçar as mangas e atuar. E quando as crianças nos incomodavam ou, naturalmente, nos enervavam, bastava olhar as pastas com seus históricos deprimentes ao lado de sua fotografia 3x4 para voltar o amor por elas e nossa oração pelo futuro de cada uma.
Recebemos muito apoio de meu saudoso sogro, na foto com minha esposa, que nos visitava com certa frequência desde São Paulo. Aquele lugar era também familiar para ele, conforme o que conto ao fim desta postagem.
.Em outra ocasião, trouxe para visitar-nos, no seu Fusquinha, sua filha mais velha, à direita, que vivia em Nova York, e sua sobrinha que vivia na Finlândia. A última via deslumbrada, pela primeira vez na vida, um pé de limoeiro e árvores de manga e de abacate, carregadas das frutas que em seu país são pequenas e importadas (nas árvores do orfanato parecendo gigantes se comparadas).
Uma cerca danificada pelos anos e falha em vários pontos fez com que fosse urgente o orfanato ser cercado convenientemente. O saudoso Jaulino Humberto, um mineiro que começara sua carreira salvacionista em Jacutinga, e que agora era o chefe de propriedades no quartel nacional em São Paulo, empenhou-se nesse projeto e em poucos meses uma boa cerca estava em volta da grande propriedade do orfanato, como se vê na foto.
De outra feita, visitou-nos um amigo português, que logo foi vestindo o ponche gaúcho. Com ele tive bons momentos de oração, o que fortaleceu ainda mais minha vida espiritual.
Vem cantar, cauboizinho, vem cantar/ Lá no vale, na montanha a cavalgar,/O rebanho a recolher, pois já vai anoitecer;/Vem cantar, cauboizinho, vem cantar! /Nada tens o que temer, pois DEUS vai-te proteger, / Ao teu lado sempre está, pra ouvir-te e abençoar. /Vem cantar, cauboizinho, vem cantar,/ Conta a todos que Jesus pode salvar;/ Vai a nova transmitir, pois a lua vai surgir,/ Vem cantar cauboizinho, vem cantar!
E o nosso cauboizinho enfrentava o desafio de, nos dois anos anteriores ter estudado em inglês, agora, por dois anos em português, e na próxima etapa de vida ter de estudar, durante quatro anos... em sueco. Mas, hábil, domou esse "boi bravo" que de fato lhe serviu de boa bagagem cultural para o seu futuro!
Certo dia, vi um carro estacionar e fui cumprimentar as pessoas. Para surpresa minha, vinha visitar o orfanato um amigo que não via há muitos anos, a ponto quase de não reconhecê-lo. Sua mãe dirigira o orfanato no final dos anos 50. Ele e sua esposa gaúcha vivem na Flórida, mas rever os lugares de sua infância demonstrava claramente ser uma experiência preciosa para ele.
Aqui, juntos diante da fachada do orfanato, enquanto ao fundo as meninas brincavam.
A visita se estendeu a este lugar próximo que lhe era também familiar. Nesta bela cachoeira muitas vezes trazíamos as meninas para nadar. Certa vez, sentado e vigiando-as, vi um menino desconhecido boiando de forma estranha na outra margem, lugar de mais profundidade. Alguns casais bebiam e riam, despreocupados, perto de mim. Com um grito, chamei-lhes a atencão: "De quem é aquela criança?". O pai atirou-se na água e recolheu seu filho, fez respiração boca-a-boca e levou-o com vida ao hospital. Como não sei nadar, sempre me lembro desse meu socorro "no grito" como também de outra ocasião quando, em Guarujá, salvei duas pessoas que se afogavam ao meu lado, pelo simples fato que considero milagroso de meu pé ter alcançado uma pequena elevação segura.
Minhas experiências atípicas em Jacutinga incluíram batizar nas águas da cachoeira meu concunhado, seu filho e sua sobrinha que os visitava da Austrália. E nunca me esqueco do que aconteceu exato naqueles momentos: animais vieram olhar-nos de um barranco, como que entendendo o que acontecia. A cena da manjedoura foi lembrada.
Foi a única vez em que batizei. Entrei na água com o meu "certificado de batismo", uma T-shirt que comprara com os dizeres "Eu fui batizado no rio Jordão", por ocasião de minha primeira viagem a Israel. O líder da excursão, William Francis, batizou três dos participantes, sendo eu um deles.
E assim vivemos na bela Jacutinga de 1987 a 1989. O lugar da foto, ao lado de nossa casa de madeira, tornou-se histórico, pois precisamente nele, enquanto regava o gramado, ouvi a voz do Senhor falar ao meu coração uma palavra que também falara à minha esposa: Finlândia. Consideramos, surpresos ambos, um chamado para trabalharmos na terra onde nascera a Anneli. Lutamos para que o chamado fosse concretizado, mas a liderança nacional opôs-se veementemente, fazendo-nos com que deixássemos as fileiras do Exército de Salvação para cumpri-lo. Deus nos abria, por outro lado, portas as mais incríveis e imperdíveis. Veja no link abaixo, o nosso "próximo passo".
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FOTOS * DO * PASSADO
Meu sogro e sua família, missionários da Finlândia, chegaram ao Brasil em 1953 e tiveram como primeira nomeação ser auxiliares no Lar Américode Oliveira Prado, em Jacutinga-MG, onde passaram quase um ano. Muitos anos depois, passando dois anos no lugar, nós sentimos o chamado para a Finlândia, exatamente o reverso da história (no Brasil nasceram-lhes ainda duas meninas).
De 1954 a 1957 trabalharam no orfanato de Jacutinga, uma parte junto com uma missionária sueca, os pais de Sidney Barros Campos, o oficial que foi meu primeiro pastor no Exército de Salvação. Na postagem "Como, quando e por que ingressei no Exército de Salvação" (ver Índice de todos os meus tópicos) conto a respeito dos passos que Deus me fez dar e, em questão de poucos meses, ingressar nesta organização à qual pertenço há 40 anos.
Naquele tempo o orfanato possuía uma banda constituída pelos filhos dos oficiais e crianças internas.
Sidney, que veio a falecer com apenas 38 anos, contava-me sobre suas aventuras na sua sempre lembrada Jacutinga. Muitos hinos aprendi com ele, os quais aprendera na Assembléia de Deus local. Tocava violão muito bem e com ele também aprendi a tocar, nunca chegando aos seus pés nesse sentido. Nestas últimas férias no Brasil foi emocionante visitar sua família (ver recente postagem Férias no Brasil - Montanhas).De 1957 a 1960, a alemã Hedwig Heinzle Silva dirigiu o orfanato. No mesmo estado de Minas Gerais, anos antes, enquanto distribuía literatura salvacionista em bares e restaurantes em Belo Horizonte, recebeu de um senhor a doação de uma grande propriedade que o Exército de Salvação transformou em um orfanato, que ela dirigiu e que existe até hoje. Então viúva, com quatro filhos - e muitos órfãos - dirigiu sozinha a entidade congênere em Jacutinga.
Na foto, junto aos internos, o amigo que veio da Flórida rever o orfanato, um tanto emocionado (é o terceiro menino em pé, da direita para a esquerda)
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Conclusão
Pessoas da cidade ajudaram na época a manter o orfanato, familiares do doador, a FEBEM de Minas Gerais, o Projeto Irmãozinho da Prefeitura local, muitas malharias que duas vezes por ano começaram a doar malhar para vendermos nos bazares do ES em São Paulo etc. Um bom impulso financeiro, no entanto, veio-nos através dos apadrinhamentos do ES do exterior, liderados pela Sra. Deuel, uma missionária americana à frente do departamento no Quartel Nacional, que nos livrou de muitos apertos financeiros.
Agradeço a Deus pelo tempo, distante agora, em que passamos naquele lugar. No último dia, com nossa bagagem sobre um caminhão, pronta para eu viajar antes do amanhecer do dia seguinte, não pude conciliar o sono. Uma incerteza quanto ao passo que daria dominou-me, estranhamente. Indo sozinho com o motorista e seu ajudante para o Rio de Janeiro, onde seríamos hospedados por uma igreja amiga antes de viajarmos à Finlândia, pedi a Deus urgente "um sinal de que meus caminhos eram de fato os dEle para mim". No meio da viagem, de repente vimos um acidente de carro e um jovem ensanguentado com as mãos levantadas para que parássemos e o ajudássemos. Seus amigos jaziam mortos ao lado do carro destroçado. Fazendo uma manobra arriscadíssima - que poderia ter causado outro acidente - falei ao motorista que voltasse e entregasse o rapaz, que chorava na cabine do caminhão ao nosso lado, ao posto rodoviário que ficara para trás. Assim o fizemos, avisamos do acidente e retomamos o nosso caminho. Sim, eu continuaria salvando pessoas, pensei... e esse foi o sinal que eu pedira a Deus.
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FOTOS * DO * PRESENTE
Exatamente como meu amigo da Flórida, meu filho - que chamei de "cauboizinho"- em 2009 foi rever Jacutinga e o local em que se situara o orfanato, que encerrara, por motivos que me são desconhecidos, as suas atividades.
Acompanhou-o sua esposa, cuja mãe oficial também dirigira o orfanato alguns anos depois de nós.
Os ciprestes que eu amarrara haviam-se desprendido, mas continuavam lá.
Agora calçado com paralelepípedos, o lugar parece ser ocupado por departamentos da Prefeitura local. Mas podemos ainda pela foto reconhecer a casa e os lugares onde eram a cozinha, a despensa, os quartos dos internos...
Os fundamentos da casa dos administradores ainda estão lá, e posso "ver a sala, os quartos dos filhos e o nosso, a cozinha, os banheiros..." Tudo passa, as recordações e as montanhas permanecem.
Nosso filho ao lado do que restou de nossa casa... (emoção minha...). Não posso garantir, mas o banco cuja pontinha aparece na ponta esquerda dá a impressão de que ainda está pintado por mim, que não só adquiri dois bancos de cimento mas pintei neles versículos bíblicos. Deus seja louvado pelo trabalho que, ao longo das décadas, foi realizado para Ele por tantos oficiais salvacionistas em prol da infância carente naquele belo lugar!
ååååååååååååååååååå
L i n k s
Quer saber a continuação desta postagem ou o nosso "próximo passo"? Leia:
Em anos recentes, lembrei-me de Jacutinga ao visitar aqui na Finlândia um pitoresco "Museu do Campo":